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Matérias - 02/01/2018 | 15h05m

Menos de 50% dos infectados por HIV e tuberculose tomam antirretroviral

Brasília
Menos da metade das pessoas que têm tuberculose e foram infectadas pelo vírus HIV tomam o remédio antirretroviral no Brasil. Apenas 41,8% dos pacientes de tuberculose com coinfecção por HIV fazem uso da terapia antirretroviral (TARV) no país, enquanto no mundo o percentual foi de 85%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Quando associadas e não tratadas, as duas infecções podem provocar outras doenças e diminuir a sobrevida do paciente. Pessoas que vivem com HIV/aids no Brasil estão 28 vezes mais propensas a desenvolver a tuberculose, uma das doenças que mais matam no mundo e que ocupa a nona posição no ranking geral de mortes no mundo.

As informações constam do último relatório global da tuberculose elaborado pela OMS e divulgado no fim do ano passado. Segundo o documento, o Brasil está entre os 20 países com a maior carga de pessoas com tuberculose e infectadas com o vírus HIV. Em 2016, além do Brasil, outros cinco países tinham menos de 50% dos pacientes infectados pelas duas doenças em tratamento antirretroviral: Congo, Gana, Guiné-Bissau, Indonésia e Libéria.

“Quando a gente está com HIV sem tratamento, o HIV vai destruindo a imunidade no corpo da pessoa e aí abre as portas para a tuberculose, tanto pra pessoa se contaminar com o bacilo da tuberculose, quanto para, uma vez contaminada, desenvolver a doença da tuberculose”, explica o infectologista Rafael Sacramento, integrante da organização Médico sem Fronteiras.

No Brasil, a tuberculose é a principal causa de morte de pacientes que vivem com o vírus da imunodeficiência humana. De acordo com o mais recente panorama de mortalidade da tuberculose disponível no país, seis em cada dez das pessoas que morreram por HIV em 2014 tinham tuberculose como causa associada do óbito.

A OMS estima que ocorreram, em 2016, cerca de 1,3 milhão de mortes no mundo por tuberculose entre pacientes não infectados pelo vírus HIV e 374 mil mortes entre os soropositivos, o que corresponde a uma média de mil mortes por dia. No Brasil, no mesmo ano, foram mais de 5 mil mortes por tuberculose e quase 2 mil pela coinfecção tuberculose e HIV.

“Os desfechos do tratamento da tuberculose quando a pessoa tem HIV são muito ruins, porque continua tendo muito óbito. Tem um percentual de óbito, um percentual de perda de acompanhamento ou abandono e um percentual de falha, o que faz com que o tratamento não tenha uma eficiência boa”, relata a pesquisadora Valeria Rolla, coordenadora do laboratório de micobacterioses da Fundação Oswaldo Cruz.

Segundo o Ministério da Saúde, pacientes coinfectados com tuberculose e HIV que tomam os medicamentos 35% mais chance de cura e morrem 44% menos por tuberculose do que os pacientes que não usam a terapia. A OMS também ressalta que a maioria das mortes por tuberculose pode ser prevenida com diagnóstico precoce e tratamento adequado. A organização calcula que entre os anos 2000 e 2016 foram evitadas 53 milhões de mortes de pessoas que foram diagnosticas e tratadas com sucesso.

Tratamento e cura
Entre as pessoas diagnosticadas com tuberculose e HIV, há o desafio de garantir a total adesão à terapia antirretroviral (TARV) ou à terapia de combate à tuberculose. Seja por falta de acesso aos medicamentos ou por rejeição aos efeitos colaterais da terapia, muitos pacientes enfrentam dificuldades para seguir o tratamento de forma adequada.

A artesã Sandra Maria da Silva Gonçalo, de 37 anos, vivenciou a experiência de abandonar a terapia antirretroviral. Moradora de Beberibe, no Recife (PE), Sandra descobriu ser soropositiva em 2003 e sempre seguiu com rigor a rotina de tomar os medicamentos antirretrovirais. Mas há pouco mais de um ano, abandonou o tratamento por alguns meses e desenvolveu a tuberculose.

“Fiquei doente, a imunidade baixou, porque eu estava em depressão e terminei contraindo a tuberculose. Aí, eu me internei pra investigar, porque meu caso foi extrapulmonar. Quando é no pulmão é mais fácil diagnosticar, eu estava com todos os sintomas, mas não estava com tosse, não estava com secreção. Fiz todo o processo e bateria de exames para poder vir descobrir que era no baço”, relatou.

Sandra deixou de tomar os antirretrovirais depois de enfrentar um processo de violência doméstica e psicológica, o que a levou à depressão e ao abandono dos remédios do HIV. Foi a primeira vez que ela desenvolveu a doença. Ela acredita que foi infectada pelo ex-marido, que tinha tuberculose e não tratava adequadamente.

Ao contrário do ex-companheiro, Sandra iniciou imediatamente o tratamento e retomou a rotina com os medicamentos para controle do HIV. Ficou curada da tuberculose em nove meses. Os medicamentos foram adquiridos na rede pública de saúde e apesar dos fortes efeitos colaterais, Sandra conseguiu manter a disciplina para concluir a terapia.

“A dificuldade que eu enfrentei foi na questão dos medicamentos da tuberculose mesmo, porque eram muito fortes e tem que tomar quatro comprimidos todos os dias em jejum. Eu tinha tontura, ficava com mal-estar, sentia dor de estômago. Não pensei em desistir porque adquiri a tuberculose por conta de falha no meu tratamento do HIV. Aí pensei ''vou fazer logo o tratamento pra me livrar dela''", conta.

Agora, a artesã enfrenta o desafio de manter o tratamento do HIV devido à falta de medicamentos personalizados que necessita. Depois do abandono temporário no tratamento, Sandra teve de fazer três vezes exames de genotipagem para checar se o vírus passou por algum tipo de mutação e se tornou resistente à medicação. A partir dos resultados, ela precisou iniciar a chamada terapia de resgate, em que é utilizada uma combinação diferente de medicamentos para surtir mais efeito sobre a carga viral.

“O medicamento da tuberculose nunca faltou, mas os antirretrovirais sempre faltam. Estou até hoje na terapia de resgate. Quando eu vou pegar um medicamento e está faltando, eu corro pra ouvidoria do hospital, vou na farmácia e eles conseguem emprestado de outro hospital. Eu falo: ''tem de arrumar medicamento, porque eu estou na terapia de resgate e se eu falho com medicamento, você vai responder pela minha vida?''” relatou.

Sandra também trabalha sensibilizando jovens e adolescentes sobre a importância da prevenção à aids e da adesão ao tratamento na organização não governamental (ONG) Gestos: Soropositividade, Comunicação e Gênero. A organização decidiu protocolar no mês passado uma denúncia no Ministério Público de Pernambuco (MP-PE), depois de receber várias reclamações de pessoas com HIV e que não têm conseguido retirar a medicação necessária para manutenção do tratamento nas unidades estaduais de saúde.

No documento entregue na Promotoria de Saúde, a ONG destaca que Pernambuco ocupa o primeiro lugar no Nordeste em números de casos de aids, com o registro de duas mortes por dia em decorrência da doença.

Diagnóstico e tratamento precoce
O Brasil apresenta tendência de estabilização das taxas de infecção por HIV e tem atualmente cerca de 830 mil pessoas convivendo com o vírus. Em 2016, foram diagnosticados no país cerca de 38 mil novos casos. O volume, no entanto, ainda aponta para uma epidemia, em que uma pessoa é contaminada a cada 15 minutos.

Dados do último boletim epidemiológico de HIV e aids apontam que duas a cada dez pessoas infectadas com o vírus ainda não estão vinculadas a nenhum serviço público de saúde e podem não estar seguindo regularmente o tratamento para controlar a carga viral e fortalecer a imunidade contra doenças consideradas oportunistas, como a tuberculose.

“Atualmente, uma das formas mais seguras e mais assertivas de se reduzir a transmissão de HIV é diagnosticar as pessoas e colocá-las no tratamento o mais precocemente possível. Quando a pessoa está fazendo o tratamento de HIV corretamente, a circulação de vírus no sangue fica indetectável pelos métodos que temos hoje e a gente não consegue encontrar nesses casos possibilidade de transmissão”, explica o infectologista Sacramento.

No Brasil, os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde apontam melhora no diagnóstico e no acesso ao tratamento de pessoas soropositivas. Em 2016, cerca de 70% das pessoas vivendo com HIV apresentavam adesão suficiente à terapia. Contudo, desde 2013, o Ministério alerta que persiste em 9% a taxa de abandono ou interrupção do tratamento.

“Geralmente são pessoas de baixa renda. O abandono de tratamento tem muito a ver muitas vezes com pessoas que estão com seu benefício negado e não têm condição de se manter. A pessoa não tem condição de comer e se alimentar direito, isso impacta no resultado do tratamento. Pessoas relatam que não conseguem tomar a medicação de barriga vazia”, relata Roberta Gouveia, enfermeira que atua em um centro de referência a pacientes com HIV e tuberculose em Recife (PE).

Roberta também atua na ONG Gestos e defende que o foco do tratamento de pacientes soropositivos não deve estar somente no medicamento. “Deveria haver, por parte do setor saúde, uma preocupação com a prevenção da tuberculose no paciente soropositivo. Eu acho que a coisa está muito focada na dispensação de medicação, em fazer o tratamento de HIV, sem dar a devida importância à tuberculose como coinfecção”, opina a enfermeira.